Sexta-feira, 28 de Maio, a meio da tarde, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, está na apresentação da quinta e última instalação do projecto Nascentes, junto à grota do rio Lis, acompanhada por artistas, músicos e habitantes da aldeia de Fontes, todos posicionados à volta de um contentor casa de banho, preexistente no local, fechado à chave, um mono, aproveitado pelo pintor Leonardo Rito como suporte para a intervenção pictórica a partir do tema “A organização social”, em que se destaca, ao centro, no peito de um corpo negro ladeado por um esqueleto, a frase que parece inviabilizar o consenso no acolhimento da obra: “Death is not the end”. A morte não é o fim.
Durante cinco semanas consecutivas, o projecto Nascentes, promovido pela cooperativa Ccer Mais, casa da editora Omnichord Records, colocou no quotidiano das Fontes, com o apoio do JORNAL DE LEIRIA, aproximadamente três dezenas de artistas, músicos e investigadores associados à Universidade de Coimbra e ao Santuário de Fátima, com o objectivo de criar um circuito de cinco obras visuais e sonoras, uma por semana, inspiradas no rio Lis, na grota e na própria aldeia, que habitualmente existe escondida do mundo entre montes e terrenos de cultivo. E a componente de Leonardo Rito na instalação Dar cor à dor, executada em colaboração com o fotógrafo Valter Vinagre, é a que está a suscitar maior inquietação, num balanço que é, genericamente, positivo. Muito positivo, mesmo, segundo alguns moradores ouvidos pelo JORNAL DE LEIRIA.
“Para mim, está muito melhor. Aquilo [o contentor] era um monstro que estava ali. Agora, isto é uma aldeia pequena, uns gostam, outros não gostam”, esclarece Ilda Vieira, dos órgãos sociais da Associação Recreativa e Cultural Nascente do Lis. “Quem comenta, acha que não tem muito a ver com o espaço”. É macabro, diz-se.
Para Leonardo Rito, o assunto morre, literalmente, na subjectividade da arte e na interpretação que cada um lhe dá, independente da intenção do autor: “A frase [Death is not the end] é do Bob Dylan. Explicações sobre ela só mesmo ele”.
Sexta-feira, fica Valter Vinagre com a missão de dirigir-se a Graça Fonseca e ensaiar uma narrativa, entre as muitas leituras possíveis, incluindo, a poluição no rio Lis que ameaça o equilíbrio ecológico, a sustentabilidade e a vida no concelho de Leiria, problema representado metaforicamente pela imagem de um papel com excrementos encontrado ali mesmo, nas imediações da grota. “Este contentor era, por palavras antigas, uma dor de alma, não se percebia porque razão estava cá, durante 10 anos, sem servir, e, digamos, que se nos tornou praticamente impossível fugir dele”. A explicação, aparentemente, é ter sido balneário para provas de BTT, depois encerrado, comido por ferrugem, alvo de danos e vandalismo. O olhar da ministra da Cultura desvia-se, entretanto, até ao lado de lá da linha de água, onde três fotografias em grande formato revelam as entranhas do paralelepípedo: um lavatório, um cilindro, uma base de chuveiro.
Um abafadinho. Ou dois
Na instalação número cinco do projecto Nascentes, a cantora Inês Bernardo (Banda da Catraia) e o compositor e instrumentista César Cardoso (director artístico da Orquestra Jazz de Leiria) são responsáveis pela componente sonora, uma canção alegre, com alguns moradores da aldeia de Fontes a participar no coro. “Sou daqui, moro aqui em cima, e ver os habitantes desta terra tão envolvidos com estes artistas foi uma coisa muito emocionante ao longo destas semanas todas”, diz a finalista do Festival da Canção 2011 à ministra da Cultura, antes de se ouvir o tema Das Fontes só a santa, em que canta que “para lá do Largo da Capela nem tudo é pecado, mas quem passa tem de provar um pouco de abafado”. E “quem diz um, diz dois ou três, que as adegas nunca secam”.
Os habitantes das Fontes, muitos deles, pelo menos, parecem apreciar o novo circuito artístico instalado junto à nascente do rio. E elogiam: de “bonito” a “espectacular”.
Maria Emília Crespo, 87 anos, está satisfeita por ver “coisas novas” e tanta gente jovem. “É sinal que gostam disto”, sentencia. “Já aqui estou há 60 e tal anos e nunca vimos assim nada como agora”.
Para Sérgio Sousa, o projecto Nascentes representa “uma mais-valia”. E o pai, Francisco Lopes Sousa, 83 anos, o último guarda-rios nas Fontes, agora aposentado, lembra que o Lis “é uma riqueza”. A preservar.
Novos habitantes
O convívio entre artistas e moradores tem gerado, até, novas amizades. “Estamos sempre todos juntos ao fim de semana, não há distinção”, diz Miguel Sousa, da Associação Recreativa e Cultural Nascente do Lis. E há gente de fora a comprar casa. A iniciativa da Cooperativa Ccer Mais levou “mais alegria” à aldeia, conclui Carla Funina, funcionária do bar do clube.
Para o director artístico do projecto, Gui Garrido, ele próprio um dos novos proprietários de habitação nas Fontes, “há um encontro” entre duas realidades que resulta do “respeito e harmonia” colocados no desenvolvimento do Nascentes. “Muito grato a quem está cá há muitos anos e permite que venham os artistas”, afirma. “Falaremos sempre de uma cultura que tem a ver com responsabilidade social, com civismo, com fraternidade, com igualdade”.
Iniciado a 24 de Abril, o projecto Nascentes funcionou como laboratório criativo, a partir de tertúlias que desencadearam residências artísticas no espaço Serra, na Reixida. Está prevista a edição de um livro e de um podcast.