A exposição PlastiCidade – Uma História dos Plásticos em Portugal inaugura sábado, no Museu de Leiria, e ensaia outra narrativa de um dos mais versáteis materiais à disposição do Homem e a sua ligação umbilical à região.
O cenário repete-se nas notícias e redes sociais: Ilhas de lixo de plástico a flutuar no oceano, as nossas praias cravejadas de pedaços minúsculos de plástico que é quase sinónimo da nossa espécie, animais mortos pela acção directa deste material.
Mas e se lhe dissermos que o plástico, afinal não é o mau da fita, mas apenas uma matéria-prima, prática, segura para a saúde, que goza de má fama porque o ser humano não a sabe usar e que, no fim de contas, é a nossa espécie o verdadeiro mau da fita nesta história?
Ou que grande parte da riqueza e empreendedorismo da região de Leiria está tão indelevelmente ligada ao plástico, quanto a sua presença em quase todos os nossos actos do quotidiano? Para desmistificar e dar a conhecer a história da ligação da região ao redor de Leiria com esta matéria-prima, no sábado, dia 6, às 16 horas, o Museu de Leiria, inaugura a exposição PlastiCidade – Uma História dos Plásticos em Portugal. A mostra ficará patente até Dezembro de 2020.
“Muitas vezes, não concedemos dignidade a alguns objectos que são feitos em plástico, mas a dignidade é-lhes atribuída por quem lhes dá uso”, diz Vânia Carvalho, coordenadora do espaço museológico. Ao seu lado, está uma representação da “visão de Fátima” de 1917, com nossa senhora e os três pastorinhos, fabricada em plástico, na Fábrica Lena, em 1950.
A peça, fechada dentro de uma redoma translúcida de polímeros, convive por estes dias com representações medievais e barrocas de santos, em pedra e argila, datadas da Idade Média. No fim de contas, para os verdadeiros crentes, orar a estátuas de pedra, marfim ou plástico tem exactamente o mesmo valor, na medida em que o que conta é a fé de cada um.
E é esta uma das ideias fulcrais perseguidas e concretizadas com esta exposição que, pela primeira vez, faz uma abordagem da história dos plásticos em Portugal.
Da baquelite ao plástico moderno
O primeiro plástico foi sintetizado em 1907, por Leo Baekeland, através da reacção de fenol e formaldeído, em laboratório.
O resultado foi um polímero chamado baquelite, designação que também foi usada para baptizar uma das mais antigas unidades industriais de fabrico de plástico em Leiria, a Baquelite-Liz.
Cassetes de Silence 4 e Phase
Entre os objectos expostos, há dois dignos de nota, porque tocam outra área onde Leiria é uma verdadeira capital: a música independente. Uma cassete em plástico com o primeiro registo dos Phase e outra também com o primeiro registo em cassete e caixa de cartão dos Silence 4. Duas das mais conhecidas bandas saídas de Leiria nos anos 90 e que levaram o nome da cidade a todo o lado. “A caixa dos Silence 4 foi cedida por Filipe Rocha, um dos músicos dos Phase, que também cedeu a cassete dessa banda, e Paulo Mouta Pereira cedeu a cassete”, explica Vânia Carvalho.
Quem visitar a PlastiCidade fará a sua entrada no Museu de Leiria como se fosse uma normal visita. Ascenderá ao primeiro andar e à exposição permanente onde se conta a história da região, dos dinossauros do Jurássico, deixando para trás o Menino do Lapedo e os Romanos, tendo um encontro imediato com a arte sacra e com manifestações modernas e contemporâneas de artes plásticas.
“A intenção é preparar o visitante para aquilo que vai ver. A proposta é da museóloga Raquel Coimbra”, explica a coordenadora do museu. E como foi que se conseguiu alcançar este objectivo? Através de uma conversa. “Colocámos em diálogo a exposição permanente com a contemporânea sobre os plásticos. Por exemplo, as réplicas dos fósseis do Jurássico encontrados na Mina da Guimarota foram produzidas em gesso e ligantes poliméricos em 2014, com o apoio do Museu Geológico, pelo Centro para o Desenvolvimento Rápido e Sustentado do Produto (CDRsp), da Marinha Grande. Junto a essas réplicas que foram pintadas para se assemelharem aos achados originais, que estão convenientemente guardados, colocámos outras réplicas não tintadas.”
Os novos elementos identificativos, com uma cor vermelha forte foram concebidos pela equipa da Arquehoje, a mesma empresa que criou a museografia original do Museu de Leiria. Chegados à área onde se trata o período de ocupação romana, o plástico é apresentado na sua forma numismática. Ao lado dos denários e sestércios dos tempos dos imperadores da Roma antiga, exibe-se dinheiro de… plástico.
Cartões de crédito e débito mostram que, embora os materiais e tecnologias empregados hoje sejam diferentes, a função continua a ser, fundamentalmente, a mesma. Alguns passos mais à frente, junto a vários exemplares únicos de louça do Juncal, está exposta uma jarra em polietileno. Mais uma vez, os materiais são diferentes, mas o uso é o mesmo. A PlastiCidade está até presente na evocação a alguns pintores contemporâneos e nas tintas acrílicas que utilizaram nas suas obras.
Reciclar na Arte Plástica
Dois artistas de Leiria deram também o seu contributo, no núcleo de obras produzidas sobre a temática ambiental e com componentes reciclados. Ana Prates assina uma cadeira em cortiça, um polímero natural, e plástico, e Nuno Sousa Vieira contribui com uma instalação em constante actualização. Migração, é uma “peça-vitrine”, com criações artísticas suas no seu interior, construída com materiais que o criativo reutilizou, retirados da antiga fábrica de plásticos Simala, onde tem a sua oficina de trabalho. José Escada é o terceiro artista que terá exposta a peça L´Homme ecrasé par le cheval, emprestada por um particular. Mas haverá outras peças, a serem apresentadas até Dezembro de 2020.
Uma representação impressa em 3D d’O Boneco Rebelde – outra utilização moderna dos plásticos – guarda o acesso à exposição PlastiCidade. Um percurso expositivo em forma de meandros guia-nos pela história da indústria do plástico em Portugal e, em especial, na região.
A investigadora Elvira Callapez é a responsável pelo primeiro estudo alargado da história do plástico em Portugal que, em 2015, deu origem ao projecto O Triunfo da Baquelite: Contributos para uma História dos Plásticos em Portugal, desenvolvido pelo Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologia da Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa, e que, a mostra Plasticidade integra.
Dentro do espaço expositivo, a primeira de todas as peças a que somos apresentados são as alpercatas produzidas pela Silva & Nobre, empresa pioneira no sector, fundada por José Lúcio da Silva e José Nobre Marques, na década de 20 do século passado. Seguem-se os famosos brinquedos de plástico fabricados em Leiria, entre eles a Bota Botilde, cozinhas, camiões, aviões, carrinhos e utensílios de cozinha e utilitários de uso diário.
Há até computadores Apple Macintosh, máquinas fotográficas Polaroid, telefones de disco e teclas, peças para automóveis. Em local de destaque, estão duas peças fabricadas pela Faplana, uma empresa local, para o conceituado designer Philip Stark; o Rádio La Lal La e o Cinzeiro Joe Cactus.
Numa das paredes, expõe-se um projecto de arqueologia cultural; num vídeo em repetição contínua, industriais fundadores e operários da indústria dos plásticos e moldes narram alguns episódios vividos na génese do sector. Para ouvir os testemunhos completos captados durante a recolha de memórias, o visitante deve usar uma réplica de velho telefone de disco, como se fosse uma viagem no tempo até aos anos 60, 70 e 80.
“Só aqui na Gândara, há umas quatro ou cinco fábricas. Cada uma tenha cem ou cento e tal trabalhadores, algumas mais… depois é o pai, filho, mulher, a ter emprego na mesma fábrica. Aqui atrás não havia nada. Eram olivais e era um terreno onde havia culturas, as batatas, as couves, o feijãozito, enfim. Tudo o que era para trás era tudo terrenos agrícolas. É claro, foram construindo aqueles pavilhõezinhos ali”, diz um antigo trabalhador da Plastidom no seu testemunho.
“O museu usa as palavras dos trabalhadores para transmitir uma história dos plásticos, na região de Leiria – Pombal, Marinha Grande, Leiria e Porto de Mós – no século passado. É ‘uma’ história e não ‘a História'”, sublinha Vânia Carvalho.
Entre cápsulas espaciais e a cozinha do Meu Tio
A utilização do plástico na exploração espacial, pelo Pólo de Inovação em Engenharia de [LER_MAIS] Polímeros (PIEP), da Universidade do Minho e nas Ciências Biomédicas pelo CDRsp, do Instituto Politécnico de Leiria dão mote para a entrada no espaço destinado à abordagem das questões mediáticas sobre a poluição provocada pelo plástico.
Ou melhor, pela má utilização de um material extremamente prático pelo ser humano. Três filmes, com a colaboração da Valorlis e de outras entidades ligadas à reciclagem, redução e reutilização, abordam o uso do plástico e as questões que se colocam devido à ausência de cuidados na sua utilização e deposição.
Baseada em investigações que realizou em âmbito de pós-doutoramento nos EUA, Elvira Callapez assegura que o plástico “não é perigoso para o Homem”, por ser um material inerte, apontando, por exemplo, a sua utilização biomédica para justificar a afirmação. O que está mal, diz, é a noção errada de boa parte dos seres humanos e que se trata de algo sem valor e descartável.
“A população não sabe o que é o plástico e esta exposição vai ajudar a melhorar o seu entendimento. Se as pessoas se souberem comportar, se souberem reciclar e reutilizar, não haverá problemas com o plástico.”
A exposição termina na Sala do Capítulo do museu com uma recriação da cozinha do filme O Meu Tio (1975), de Jacques Tati, com materiais que poderiam ser encontrados numa cozinha portuguesa, quando a película estreou, e com a chancela Made in Portugal.
“A programação própria deste espaço dará ainda lugar a uma parceria com o projecto Paredes com História. No Natal, a cozinha volta a mudar de decoração, quando trabalharemos os brinquedos de plástico”, refere Vânia Carvalho.
Para a exposição foi reunida uma equipa criativa local. Assim, a museografia conta com a assinatura dos arquitectos Pedro Gândara e Humberto Dias e as vertentes de design, multimédia e infografia também contam com nomes de Leiria. “São cerca de 20 pessoas de Leiria, além de todos os investigadores e colaboradores que o projecto trouxe. A ficha técnica desta exposição conta com centenas de nomes”, resume a coordenadora do espaço museológico.
Uma das grandes iniciativas associadas à exposição é o congresso internacional The Plastics Heritage Congress – History, Limits and Possibilities, que decorrerá, entre 29 e 31 de Maio, com a presença de 200 especialistas na área, com três sessões, duas em Lisboa e uma Leiria, na Sala do Capítulo, do Museu de Leiria. Jeffrey Michael, da Universidade do Texas, será o orador principal e estará também presente o bisneto de Leo Baekeland, Hugh Karraker, que é produtor de cinema e que mostrará na cidade do Lis, no dia 30, o filme All Things Bakelite.
A PlastiCidade – Uma História dos Plásticos em Portugal poderá ser visitada até ao final do ano que vem, todos os dias, das 9:30 às 17:30 horas.
Serões a fazer plástico
O interesse de Elvira Callapez pelo tema do plástico surgiu quando ainda era estudante universitária e estudava Química Aplicada. “Tive uma professora que me desafiou a fazer um trabalho sobre história da indústria de plásticos”, recorda. A investigadora dirigiu-se à região de Leiria onde, desde 1927, laboram algumas das mais antigas unidades nacionais de produção de polímeros plásticos.
A primeira que visitou foi a Baquelite-Liz, na Gândara, Leiria, uma das mais antigas. A fábrica pioneira foi a Nobre e Silva, fundada por dois empregados bancários, José Lúcio da Silva e José Nobre Marques, que, nas horas livres, produziam alpercatas numa pequena unidade fabril.
“Esta não foi a primeira fábrica de plásticos a nível nacional por apenas alguns meses. Segundo a minha pesquisa, foi a SIPE, do Dafundo, a transformar e a produzir polímero. A Nobre e Silva apenas transformava”, explica Callapez.
Entre as curiosidades com que se deparou, está o facto de os operários desta nova indústria tecnológica terem vivido uma verdadeira revolução industrial forçada num espaço de tempo muito reduzido. Sem quaisquer qualificações e habituados a trabalhar e a tirar o sustento das courelas de terra, os aprendizes adaptaram-se às exigências dos processos técnicos exigidos pela indústria do plástico. E fizeram-no tão bem que, muitas mulheres passavam os serões a produzir terços de plástico, com recurso a máquinas simples, para ajudar a equilibrar o orçamento familiar.
Além disso, era comum os industriais de outras áreas de produção criarem secções para produzir plástico. Uma fábrica de sabão com produção de plástico? Era mais comum do que se poderá pensar.
“Nos primeiros tempos, nos anos 40 e 50, o sector não era regulado e não havia leis proteccionistas para beneficiar as empresas já existentes e que eram detidas, muitas vezes, pelos próprios elementos do Governo.” Os produtos eram bastantes vezes copiados nas viagens dos empresários e depois produzidos nas fábricas de plásticos nacionais.