Escalaram até ao topo. Os chefs de cozinha que falam com o JORNAL DE LEIRIA neste artigo trabalharam em restaurantes frequentados por alguns dos portugueses mais mediáticos e, em Inglaterra, por figuras como Angelina Jolie, Elton John, David Beckam ou membros da família real. De regresso a Leiria, gerem negócios próprios, com comida diferenciada e preço acessível a quase todas as carteiras.
Em 2014, João Pereira era chef de partida de carnes no Belcanto quando o restaurante de Lisboa conquistou a segunda estrela. A celebração entre copos prolongou-se até de manhã, com a equipa a receber José Avillez e David Jesus no aeroporto, à chegada da cerimónia. Estar no Guia Michelin tem um custo – maratonas de trabalho, exigência máxima, competição feroz – e nem todos o conseguem pagar. É como ganhar a Champions no futebol.
Numa cozinha com estrela Michelin, ou que ambiciona o estatuto, a pressão é enorme e constante. “Nos primeiros seis meses vomitava todos os dias antes de ir trabalhar. É muito duro”, conta João Pereira, dono do restaurante Muralhas, nos Andreus, Leiria. Tudo “tem de estar perfeito”, sem erros. E nem todos resistem. “Há pessoas que estão lá uma semana, vão embora e nem as facas levam. Desaparecem, somem. Acontece com muita frequência”.
São raros, em Leiria, os profissionais com experiência em restaurantes de estrela Michelin. João Pereira é um deles, César Vitorino e Nuno Gonçalves também. Ganha-se melhor, aprende-se com os melhores, não é tão glamoroso como parece. “Estamos a falar de 16 ou 17 horas por dia em que tudo tem de estar pronto a horas e tudo tem de estar na perfeição”, explica César Vitorino, que depois de uma curta passagem pelo Yeatman (duas estrelas, no Porto) começou como cozinheiro de terceira em Londres, com o chef Nuno Mendes, no exclusivo Chiltern Firehouse, que perseguia a primeira estrela e recebia famosos como David Beckam, Tony Blair, Ralph Lauren, Kirsten Dunst, Elizabeth Hurley, John Cleese ou Courtney Love, entre vários outros nomes do desporto, da política, da moda, do cinema, da televisão e da música. “Durante seis meses pensei desistir”, resume o proprietário do restaurante Foco, na Cruz da Areia, Leiria. Em Inglaterra, viu companheiros desabarem em lágrimas – “diziam que iam à casa de banho e nunca mais voltavam” – e testemunhou o consumo de droga nos bastidores como relatado, por exemplo, por Anthony Bourdain no livro Kitchen Confidential. “São muitas horas de concentração e as pessoas não aguentam”.
A perspectiva de Nuno Gonçalves é semelhante e é a de quem atingiu o patamar superior da hierarquia: depois do resort Vila Vita no Algarve, que inclui o duas estrelas Ocean, trabalhou em Londres no Aqua Shard, no Waterside Inn (três estrelas), no Galvin at Windows (uma estrela) e no Galvin La Chapelle (uma estrela, que manteve, enquanto head chef). “Já estive em situações de que não me orgulho”, admite ao JORNAL DE LEIRIA. Um “ambiente brutal” e “um pouco desumano”, com “muita competição”, sobretudo “ao nível Michelin”, em que “não pode haver falhas”, o que implica “abdicar da vida pessoal em prol da profissão”.
Salário nível Londres
Com o esforço, vem a recompensa. Além de poder dizer que colaborou com chefs como Chris e Jeff Galvin, Albert Roux e Gary Rhodes, Nuno Gonçalves estava a ganhar alguns milhares de euros por mês em Inglaterra quando regressou a Leiria, no ano passado, para fundar o projecto Chefologia e proporcionar aos filhos, ainda crianças, um contexto mais calmo. Era chef executivo no Quaglino’s, um destino favorito da família real britânica e de celebridades como Angelina Jolie, Elton John ou Mick Jagger.
Por outro lado, há pessoas que não se esquecem. “É nos momentos difíceis que se estabelecem relações”, salienta Nuno Gonçalves, para quem o saldo é, claramente, positivo. “Adoro o que faço e fiz as maiores amizades na cozinha”. João Pereira confirma – “criam-se laços muito fortes” – e dá como prova a noite inicial do novo Muralhas: “Trabalhei para o Avillez um ano e meio e ele veio à inauguração”. No Belcanto, ouvia todas as manhãs o mantra que pretende no próprio negócio: divirtam-se a cozinhar. “No dia em que não me divertir fecho o restaurante e procuro outra profissão”.
Um dos principais atractivos para quem aspira a subir na carreira é a oportunidade de aprender com lendas da restauração numa atmosfera multicultural, de várias nacionalidades e diferentes tradições gastronómicas. Formado na Escola Profissional de Leiria, João Pereira mudou-se para Lisboa a perder dinheiro, vindo do resort Suites Alba, propriedade de Luís Figo. No Belcanto, que considera “um dos melhores restaurantes portugueses”, de “um dos melhores chefs portugueses”, reportava directamente ao chef e sous chef, partilhava a cozinha com um chef de partida de peixes japonês e, sobretudo, compreendeu que “o sabor é o mais importante”. Mais do que a técnica.
Para César Vitorino, formado pela Escola Profissional Beira Aguieira, ir para Inglaterra sem falar inglês justificava- se com a vontade de conhecer novas realidades, acumular experiência e explorar todas as opções. No Londrino, no T?t? Eatery e no Chiltern Firehouse (200 a 300 clientes durante o almoço e outros tantos ao jantar) acredita que aprendeu “a trabalhar sob pressão”, que é “muito alta”, e que adquiriu o essencial sobre a “organização no trabalho”, que é “muito exigente”, além de uma “outra visão do que é o empratamento”.
Gritos e insultos
Se a televisão coloca em destaque os chefs com mau feitio, de que Gordon Ramsay e Ljubomir Stanisic são, provavelmente, os mais conhecidos em Portugal, acontece que nem sempre a liderança se exerce através de insultos e broncas, pelo contrário, cada chef tem um estilo próprio. João Pereira considera “asqueroso” o que vê no pequeno ecrã e contrapõe o modelo do Belcanto, onde “não há brincadeira”, quando estão 20 pessoas em simultâneo na cozinha, mas também não há humilhação. Exigência máxima, sim, “com o maior respeito e a maior consideração pelas pessoas”, sublinha. “A liderança no Belcanto é pelo exemplo e para mim é a única maneira de liderar”.
Para Nuno Gonçalves, “o mais importante durante o serviço é que toda a gente saiba exactamente o que tem a fazer”. Ou seja, organização, organização, organização. “Não há conversa”, mas, por outro lado, “não há gritos”, afirma o chef natural de Pombal, que privilegia o planeamento, a rigidez e a disciplina. “Gosto de silêncio, não gosto de cozinhas aos berros”. No Quaglino’s, coordenou um grupo de 62 cozinheiros para 550 clientes por jantar. “É muito difícil e de uma pressão enorme mantermos a qualidade e mantermos o foco, mas acaba por se formar uma máquina oleada e funciona”. E, mais do que levantar a voz, “o espírito de equipa é meio caminho andado para o sucesso”.
Onde os encontrar
Publicado há mais de 100 anos, o livrinho vermelho ainda dita leis. “Há chefs que se suicidam por perder uma estrela” e outros “que acham que não usufruem da cozinha vivendo sob esta pressão”, lembra João Pereira, mas, entretanto, “há clientes que planeiam as férias consoante o Guia Michelin”, que continua a ser “o mais reconhecido no mundo”. E que “acaba por abrir muitas portas e despertar o interesse de um novo público”, acrescenta Nuno Gonçalves.
Pode Leiria sonhar com um restaurante de estrela Michelin? Nuno Gonçalves responde com optimismo e acredita que há público. “Leiria tem poderio económico bastante elevado. Está na altura de acontecer. Leiria merece”. César Vitorino concorda: “Uma estrela Michelin é possível em qualquer lado”, só é preciso “conhecer as pessoas certas”. E o chef tem de ser alguém “com muita influência”.
Em Leiria, os três dirigem projectos em que procuram aplicar o que absorveram com a elite. No Muralhas, João Pereira alimenta a ideia de que a comida é “uma experiência emocional” e cozinhar “é cuidar dos outros”. Tem planos para um menu de degustação e quer retomar o programa Jantar com as estrelas, que traz regularmente ao restaurante, numa noite única, chefs convidados.
Na Chefologia, além de consultoria especializada para o sector da restauração, Nuno Gonçalves disponibiliza take-away (em Colmeias, Leiria), sob encomenda, e este Verão lançou outra proposta, a Chef-o-logia’s Table, jantares até 16 pessoas com cozinha de autor ao nível Michelin em menu de degustação acompanhado por vinhos nacionais seleccionados.
No restaurante Foco, na Cruz da Areia, enquanto imagina novos investimentos perto da praia e no centro de Leiria, César Vitorino apresenta uma oferta inspirada nos sabores asiáticos e na utilização da lenha e do carvão, com técnicas e processos que, garante, raramente se encontram em Leiria ou mesmo em Portugal. Embora nem sempre mande a complexidade, pelo menos para satisfazer este chef. Às vezes, basta “uma boa bifana”.