Joana foi mãe há um mês. Desde que regressou ao apartamento onde vive, em Leiria, que não saiu de casa, mas não é por causa da pequena Beatriz que não o faz. Ou melhor, até é, mas não é só.
A ansiedade pelo estado de pandemia, que marcou os últimos meses de gravidez, aumentou e encara o mundo para lá da porta do quarto andar onde vive como uma ameaça, para si e para os seus.
Um estudo da Organização Mundial da Saúde revela que um novo fenómeno, baptizado “Cansaço da Pandemia”, atinge já 60% da população.
A Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) classifica-o como “um sentimento de sobrecarga, por nos mantermos constantemente vigilantes, e de cansaço, por obedecermos a restrições e alterações na nossa vida”.
“Todos se comportam como se apanhar a doença fosse uma inevitabilidade e que o melhor é despachar isto e depois logo se vê. Parece que aquilo que a internet ou o Zé, que é electricista e ouviu dizer que isto é uma manobra para vender vacinas, é que são médicos especialistas!”, diz Joana. Os vizinhos, diz, não respeitam distâncias, nem obrigatoriedade de usar máscara.
Joana evita até os contactos com a família, porque não vive com ela. O marido, Pedro, em teletrabalho, apoia-a e é ele quem vai à rua.
“Mas só para passear o cão e fazer compras. Desinfecto tudo, quando chego a casa.” Deixou de utilizar o elevador, quando se apercebeu que alguns vizinhos retiravam a máscara assim que franqueavam a porta do prédio. “Acabou por ser uma coisa positiva, porque agora faço um pouco mais de exercício, especialmente, quando tenho de carregar coisas cá para cima”, afirma Pedro.
O número
30%
Entre 20% a 30% dos portugueses podem sofrer impacto psicológico da pandemia, refere a OPP.
Os psicólogos explicam que a pandemia obriga a uma grande capacidade de adaptação e, como tal, é natural que nos possamos sentir menos motivados para seguir as orientações e os comportamentos de protecção, após meses a viver com limitações, sacrifícios e incerteza.
Após o medo “vem o cansaço e o cansaço pode provocar indiferença” e diminuição da percepção de risco, já que nos “habituámos” ao coronavírus.
[LER_MAIS]Os efeitos colaterais da pandemia, com o desemprego, a perda de rendimentos ou a deterioração das condições de vida são igualmente penalizadores para a saúde mental, sublinha a Ordem dos Psicólogos.
“A crise pandémica e sócio-económica gera insegurança, medo e ansiedade acerca do presente e do futuro, podendo agravar ou conduzir a dificuldades e problemas de saúde psicológica, como a depressão, a ansiedade ou o stress.”
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Pedir ajuda não é vergonha
A pandemia está a dar-nos a volta à cabeça
Além das tensões no seio familiar, como no caso de Joana e Pedro, há vários sectores da sociedade que estão a sofrer de uma espécie de“pandemia psicológica”. Nas empresas, nos hospitais, nas escolas ou nos lares de idosos, há relatos de que “aCovid-19 está a pôr-nos doidos”. A frase é de João, economista numa empresa de exportação de Pombal.
Conta que, desde há meses, quando as equipas regressaram do confinamento, que nota que os colegas se tornaram mais “agressivos, menos dispostosa ajudar”, mais defensores dos seus direitos “e mais cínicos”.
O número
200
“Vejo de tudo, desde o desleixo nas recomendações da DGS, porque ‘se apanhar o bicho, ao menos, fico imune, como o Bolsonaro ou o Trump’ [estudos demonstram que não é verdade e há cada vez mais casos de reinfecção], às reacções de hostilidade aberta, quando alertamos alguém para um erro nas guias de remessa. Como se os estivéssemos a esmagar com uma imaginada posição hierárquica superior, em vez de tentar evitar algo potencialmente pior”, conta.
O presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Cínica e da Saúde da OPP, David Neto, explica que é possível que o sentimento de crise iminente, real ou apercebida, possa estar na origem destes fenómenos.
“Todas as mudanças provocam stress e o seu maior ou menor grau depende do facto de as equipas, já antes da pandemia, terem ou não uma certa disfuncionalidade. A maior preocupação dos trabalhadores advém da possibilidade de perda do emprego e muitos começam a sentir isto antes sequer de a situação começar.”
O psicólogo sublinha que, antes da declaração de pandemia, na área da saúde psicológica, há vários anos que Portugal vivia uma situação preocupante.
“Tínhamos estudos que nos indicavam que um em cada cinco portugueses corria risco de distúrbio mental no espaço de um ano.” Aponta ainda o facto de, hoje, em todo o território português, haver pouco mais de 200 psicólogos nos serviços de cuidados de saúde primária. Um número baixo que, há muito, tem sido contestado pela OPP junto dos sucessivos Governos.
“É como se a saúde mental não fosse um factor importante. Mas, no interior e, em cidades como Leiria, fora de Lisboa e Porto, a situação é pior.” A cobertura por profissionais de saúde mental neste nível de saúde, conclui, “é insuficiente”.
David Neto adianta que as perturbações atingem, especialmente, pessoas que estão em três situações: as que eram já afectadas por perturbações de ansiedade ligada a questões de saúde ou ao medo de morrer – hipocondríacos, pessoas com sintomas obsessivos compulsivos ou pânico– e que sofrem recaídas.
As que vivem um isolamento por o contacto com outras pessoas ter sido reduzido. “Porque o apoio social é muito importante na saúde mental, esta situação é especialmente penalizadora para os idosos.”
E, por fim, as que sentem na pele a crise económica. “As crises agravam o nível de ansiedade e as situações psicológicas.” Há ainda a questão dos profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos -, que, neste momento, sofrem de exaustão e burnout, e podem vir a sofrer de Stress Pós Traumático, a médio e longo prazo, devido à pressão e aos constantes cenários de vida ou de morte.
“Há investigação internacional que mostra um aumento de casos.”
Livro ajuda pais e educadores
Vamos Enfrentar a Tua Ansiedade é o segundo livro de Paulo José Costa, assistente de Psicologia do Serviço de Pediatria do Centro Hospitalar de Leiria, ilustrado por Bruno Gaspar, e destina-se a crianças dos 6 aos 12 anos.
É um manual para leitura conjunta entre pais e filhos, extensível a parentes, professores, educadores e alunos.
“Durante a quarentena, quando tivemos de ir para casa, continuei a fazer o meu trabalho em psicologia à distância e reparei que boa parte das queixas era sobre a pandemia. Senti necessidade de criar um roteiro de intervenção e pesquisei o assunto para criar ferramentas de trabalho que abordassem os surtos de ansiedade.”
O resultado foi o livro que está disponível em paulojosecosta.com ou nas livrarias da cidade de Leiria.
Isolamento e solidão nos idosos
Sandra Camilo é assistente social e explica que o impacto nos idosos também tem sido grande. Foi-o, especialmente, na primeira vaga, quando muitos não podiam ver e falar com a família. “Sentiam-se sós, abandonados e isolados, com uma ameaça fora de portas que podia, a qualquer momento, roubar-lhes o pouco que ainda tinham”, recorda, adiantando que as redes sociais e os meios audiovisuais não conseguiram aplacar esse abandono, mais sentido do que real.
“Percebemos que se alegravam mais com as visitas presenciais, com um vidro a separá-los dos entes queridos, do que com as conversas pelo Skype.” O apoio psicológico, entende, é fundamental nas instituições e lares de idosos. “São membros da comunidade, adultos, lúcidos, racionais, que precisam de falar e de ter quem os entenda. Não precisam de ser infantilizados!”
No outro extremo etário, as crianças e adolescentes também têm sentido a pandemia. Nos mais pequenos, o impacto é canalizado pelos pais. “Onde os progenitores lidam de forma negativa com ele, psicologicamente, poderá haver ansiedade ligada ao ambiente do lar”, explica David Neto. Os adolescentes reagem de forma diferente e as consequências podem ser maiores.
“Nestes jovens, o contacto social reveste-se de maior importância.” O psicólogo alerta ainda para a necessidade de se proteger os jovens infectados pela Covid-19, sob pena de poderem ser estigmatizados pelos colegas da escola e amigos. Paulo José Costa, psicólogo especializado em crianças e jovens, verificou que, nos mais jovens e não só, há um impacto notório provocado pela diminuição de actividades extra-curriculares, que serviam para libertar tensão.
“Normalmente, as acções físicas rotineiras e prazerosas têm um efeito benéfico. Além disso, vivemos um medo constante, que já dura meses, em torno do contágio e de ficarmos doentes.”
Costa destaca que não houve, desde Março, um “desligar absoluto da Covid-19”. Deve existir, aconselha, uma “mensagem de esperança” sempre subjacente, para que os mais novos “possam perspectivar um futuro risonho”.
“Há crianças que irão ficar infectadas e que aprenderão a enfrentar o futuro com maior resiliência”, acredita.
Exercício, mindfulness e relaxamento
Para quem vive praticamente barricado dentro de casa, Paulo Costa reconhece que é difícil mudar o pensamento e convicções, mas que é essencial filtrar as notícias e procurar outras experiências psicológicas, que permitam distinguir o que é importante.
“Caso contrário, cair-seá num círculo vicioso que deve ser quebrado, com ajuda de um psicólogo se for necessário.”
E porque não adoptar técnicas de relaxamento e de minfulness? O psicólogo David Neto também deixa conselhos para se lidar com a situação.
“Deve manter a distância física, mas não abdicar do contacto social, se for necessário recorrendo a novas tecnologias, ou ao vivo, respeitando os cuidados essenciais e as distâncias.”
E praticar exercício ou relaxamento.
“Em situações de teletrabalho, deve separar aquilo que é trabalho do lazer. Em casa, deve criar rotinas e separar fisicamente os espaços entre as zonas de lazer e as de trabalho.”