Hoje, a água flui, canalizada nas torneiras dos lares e as fontes perderam o seu papel.
Mesmo assim, ainda há quem as prefira para se abastecer de água para beber, apesar de, a propósito do Dia Nacional da Água, que se celebrou no dia 1 deste mês, a associação ambientalista Zero alertar para a “poluição generalizada que ameaça a água que bebemos”.
Na região, nas aldeias, a maioria das fontes estão vazias de povo e secas de água.
Servem como testemunho de tempos onde a população se juntava na fonte à conversa e que fazem parte da identidade local.
É certo que a água canalizada, que corre na torneira em casa, é mais prática, do que a ida à fonte. Não obstante, há quem prefira a peregrinação mensal para abastecer nesta ou naquela bica que o boca-a-boca garante ser de qualidade, livre de substâncias que purificam a água, mas que lhe dão “cheiro” à saída da torneira.
Tiago Santos está rodeado de garrafões de várias marcas. Enche-os na Fonte das Sete Bicas, a poucos metros da Fonte do Povo, na aldeia da Mata, na freguesia da Urqueira, concelho de Ourém.
Tem 32 anos e é empregado de loja. Veio acompanhado pela mulher, Sara, 30 anos, empregada numa garrafeira. Dizem que preferem a ida à fonte para garantir a água de cada dia.
No largo criado para servir quem ali se desloca para se abastecer no furo da junta de freguesia, há um corrupio de carros que chegam e partem carregados de garrafões. O ritual faz-se ao domingo à tarde, quando há mais disponibilidade.
“É mais saudável. Não tem cloro e sabe melhor”, asseguram.
Sara explica que é um hábito adquirido com os pais, que também usam aquela fonte para armazenar a água consumida à mesa.
A Junta de Freguesia da Urqueira garante que a água é testada e os resultados dos parâmetros são afixados para consulta pública no largo.
Desta vez, trouxeram “uns 30 garrafões”, que irão armazenar na garagem, protegidos da luz com uma manta por cima, de modo a evitar o eventual aparecimento de “verdete”.
Ao lado, na terceira bica da fonte, Carlos Simões, 69 anos, tez bronzeada e mãos fortes, carrega quatro garrafões para a mala do carro. Tem o hábito mensal de ir à fonte, porém, normalmente, vai a outra nos arredores de casa, na Mata do Fárrio.
“Hoje, calhou vir aqui. Vivo no estrangeiro, na região de Paris, e lá, compro, garrafões de água. Aqui, aproveito as fontes. Lá não as há assim, só no campo.”
Já Maria Alice, 52 anos, doméstica e cuidadora informal, trouxe a família para ajudar a encher e a carregar os garrafões. Fizeram cerca de 16 quilómetros até à fonte na Mata. Há cerca de dez anos, antes de fazerem aqui as obras comecei a vir à Fonte do Povo, aqui ao lado.”
A ausência de sabor e a leveza são também as qualidades que a fazem preferir esta água.
A abastecer-se nas duas últimas bicas da fonte está Maria Felizardo Francisco, 74 anos.
Fermosa, segura, de riso na voz e tirada rápida nas respostas, diz que a ida à fonte lhe permite poupar dinheiro.
“Venho da Albergaria dos Doze. Vir à fonte é como fazer uma viagem no tempo. O meu marido, que fazia terraplanagens, é que ficou a saber desta fonte e, a partir daí, comecei a vir abastecer-me aqui. Antes, íamos às Mendrincas, perto de Santiais. Já fez 11 anos que ele morreu…”
Quantos garrafões leva? “Todos os que couberem no cofre do carro!” A filha, Edite, refreia-lhe o entusiasmo e esclarece que, hoje, levam 20.
Profissional da área dos seguros, a viver na Figueira da Foz, também é adepta da tradição das idas à fonte. “Ao fim-de-semana, quando venho de visita, proveito!”
Neste domingo de sol, só há uma coisa que deixa mãe e filha desiludidas. “A senhora dos tremoços que costuma estar aqui, não veio. É pena!”, brinca Maria Felizardo.
“Há 50 anos, a água era toda boa”
As fontes públicas com água potável são cada vez menos. Segundo a Zero, a poluição difusa, provocada pela agricultura, pecuária e efluentes domésticos, contamina os aquíferos superficiais e impede que sejam utilizadas.
“Cerca de 79% dos aquíferos existentes apresentam pontos de água com concentrações de nitratos e/ou azoto amoniacal acima dos valores máximos”, sublinha a associação.
“Há 50 anos, a água era toda boa. Porquê? Porque não se fazia análises. Agora, os critérios da saúde pública obrigam a que sejam realizadas e afixadas. Actualmente, há muitas juntas que preferem deixar degradar as fontes e retirar as bicas, porque não se consegue garantir a qualidade da água superficial”, admite o presidente da Junta de Carnide, no concelho de Pombal.
[LER_MAIS]Na fonte junto ao posto médico da localidade, Sílvio Santos, a terminar o mandato, conta que, perante a quantidade de pessoas que ali se deslocam, foi criada uma zona coberta para dar mais conforto.
“Normalmente, com a água da rede, fico com o estômago ácido, mas esta é leve e parece que sabe melhor”, garante Miguel Ruivo, natural da Bidoeira de Cima (Leiria).
Antes de descobrir a fonte de Carnide, deslocava-se à Ranha, também em Pombal, mas após experimentar e descobrir que a de Carnide não ganha depósito no fundo do garrafão e que tem sempre as análises afixadas, passou a deslocar-se ali.
A fonte da “água do Amor”
Há 30 anos, Gracinda Pereira mudou-se para a freguesia de Amor, no concelho de Leiria, e, desde então, desloca-se à fonte junto ao parque de merendas local. “Dizem que é melhor. Que é de um furo… Não gosto da da torneira. Não me sabe bem.”
Mesmo que não haja análises à vista e que um sinal indique que a água não é monitorizada, há dias, conta, que há filas de gente a abastecer-se.
Hoje, os garrafões enchem-se rapidamente.
Apenas outra pessoa partilha as bicas da fonte.
“Quando acordo, a primeira coisa que faço é beber um copo desta água. Ajuda na digestão”, garante Vítor que fez 33 quilómetros, desde Porto de Mós até ao parque de merendas, para se abastecer da “água do Amor”, como se diz por ali em brincadeira.
Anteriormente, atravessava a Serra dos Candeeiros, para a zona de Alcanede e ia à fonte de Tremês.
“Quando fervo a água da rede para fazer chá, fica um depósito de calcário. Mas com esta isso não acontece.”
Mas nem todos vão à fonte em busca de água para beber. Há quem a procure para a agricultura e mesmo para a piscina. É o que acontece na Torre, concelho da Batalha.
No centro da aldeia, o antigo fontanário da Lagoa ostenta o aviso de água imprópria, mas é ali que população e bombeiros vão encher os tanques. “Não recomendo o seu consumo humano. Para beber, há um bebedouro no jardim, ao lado da fonte”, alerta o presidente da Junta do Reguengo do Fétal.
Horácio Sousa explica que, embora a água seja captada num furo, é armazenada num depósito que não garante as condições de salubridade para consumo. “Há dias em que se tiram 30 e 40 mil litros de água daqui para o regadio e mesmo para as piscinas.”
Cheira a cloro? Pode ser consumida
Uma das pechas apontadas à água da rede pública é o cheiro a cloro. Mas isso não é necessariamente mau, pelo contrário.
Segundo fonte dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento (SMAS) de Leiria, o cloro é o garante da ausência de factores de contaminação, pois é usado para limpar quaisquer microorganismos.
“Se houver um cheiro a cloro [o cloro é um gás], basta colocar a água numa jarra por alguns minutos e ele evaporará e o cheiro desaparecerá”, refere a mesma fonte.
E sim, a água pode ter sabor, mas apenas consoante o material onde se situa o aquífero.
Por isso, pode acontecer que a água proveniente de terrenos com granito tenha determinadas propriedades no paladar, e a que tem origem em locais com argila, calcário ou areia, tenha outras.
“Isso não influencia a qualidade, uma vez que a água da rede é monitorizada em vários locais, desde a captação aos locais de armazenamento e à saída da torneira, no lar do consumidor. Legalmente, quem faz o abastecimento tem de cumprir vários parâmetros de controlo muito apertado”, refere o SMAS.
Se a água sair da torneira com cor amarelada, isso dever-se-á ao estado de conservação da tubagem das casas ou prédios, que estará oxidada. Se sair branca, é porque há oxigénio dissolvido e a pressão tornou-o visível.
Ao fim de dez minutos em repouso, a água voltará a ser transparente. “Acima de tudo, a água da torneira em Portugal é das melhores e mais controladas no mundo. E é mais barata do que a de compra que, ainda por cima, é engarrafada em plástico.”
Passaram-se séculos desde que Camões escreveu o seu famoso poema Descalça vai para a fonte/Lianor pela verdura; Vai fermosa, e não segura.
Mais de quatrocentos anos depois, já ninguém usa cântaros de barro e só algumas fontes garantem água potável.
Impossível garantir qualidade permanentemente
Garantir permanentemente a qualidade da água nas fontes espalhadas pelas freguesias é uma tarefa quase impossível e, bastas vezes, há conflitos com a população que não entende como é possível que uma água que sempre foi potável o deixe de ser.